Certa vez fiz parte da escrita de um texto em que se discutia o papel de João do Vale numa suposta resistência que o compositor empreendia a um modelo econômico, e essa resistência partia de uma compreensão do seu meio, do seu espaço. Em suas músicas essa resistência é explicita, não dá nem pra negar.
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A suposição era a seguinte, o autor, seja ele poeta, compositor ou escritor de qualquer espécie, faz do seu meio o ponto de partida, por mais que ele tente escrever sobre algo estranho ao seu meio, mas o seu lugar é de onde parte seu ponto de vista, sua perspectiva de mundo.
O lugar de vida da pessoa, nesse caso do compositor é onde ele vive um cotidiano próprio e que lhe pode proporcionar pontos de vista diversos. É óbvio que não podemos dizer que esse espaço define a pessoa, mas com certeza tem um papel importante. Discutir isso se torna crucial para um debate acerca de uma identidade, pois é no lugar, nesse espaço de vivência mais imediata das pessoas que se constroem (ou destroem) identidades, e todo grupo social vive do contato/interação/dinâmica da sua memória com o momento de transformação desta, que se faz no contato e transformação da cultura deste grupo.
Dessa maneira, creio, não podemos esquecer-nos de onde João do Vale vem, Pedreiras-MA. Ele Nasce num povoado chamado Lago da Onça e de lá se encaminha para o mundo. O autor tem que ser inserido no seu contexto e não abstrair o espaço, já diria Rui Moreira. João do Vale pode ser pensado assim, de onde veio e pra onde vai.
João alerta que “[...] Minha música é muito misturada comigo, minha região, com meu povo [...]” E é essa mistura que torna sua música tão maranhense, tão ligada ao Estado do Maranhão.
A meu ver, João do Vale se tornou movimento e ele não cantou o espaço estático, como se este tivesse as medidas métricas tão delimitadas, ele canta, por exemplo, que o saber do espaço se faz não numa escola, propriamente dita, mas sim num outro lugar, a experiência do sujeito. Isso é mais que o espaço objeto, é o espaço em várias dimensões, inclusive do saber:
A meu ver, João do Vale se tornou movimento e ele não cantou o espaço estático, como se este tivesse as medidas métricas tão delimitadas, ele canta, por exemplo, que o saber do espaço se faz não numa escola, propriamente dita, mas sim num outro lugar, a experiência do sujeito. Isso é mais que o espaço objeto, é o espaço em várias dimensões, inclusive do saber:
São segredos que o sertanejo
sabe.
E não teve o
prazer de
aprender ler. Uricuri madurou ô é
sinal
Que arapuá já fez mel.
E essa experiência está intimamente ligada a uma realidade concreta, não dá pra se pensar, por exemplo, o sertanejo é sertanejo, pois experimenta, vive e faz o sertão. E o que é o sertão? O sertão é mais do que o espaço adentro, após o litoral. O Sertão reúne características que no Maranhão são bem peculiares, pelo seu histórico de ocupação. Nesse espaço, como um padrão da ocupação do sertão brasileiro, o conflito entre camponês e latifundiário se faz, mas que no Maranhão a marca desse conflito está inscrita em dois elementos principais, o trabalho do camponês e a pobreza da sua população.
O trabalho passa pela precarização do sujeito. O sujeito se torna objeto na transformação das coisas e João do Vale tem essa consciência, ele percebe a alienação do sujeito do seu objeto de trabalho e da sua produção. É a separação do trabalhador que produz do seu produto do trabalho. Na “sina do caboclo”, ele conta que:
Quer ver eu bater enxada no chão,
com força, coragem , com satisfação ?
e só me dar terra prá ver como é :
eu planto feijão, arroz e café ;
Mas que sua força não dá para apenas manter o patrão:
Mas plantar prá dividir
Não faço mais isso, não.
Eu sou um pobre caboclo,
Ganho a vida na enxada.
O que eu colho é dividido
Com quem não planta nada.
Aqui está já fincada a pobreza onde se insere o caboclo, e que é marca de sua música, em que sua história se mistura com suas composições que cantam o contexto do pobre que tem que trabalhar, e muitas vezes dividir sua produção, para se manter. A relação do latifúndio no Maranhão que concentra terras, no estado que têm suas terras griladas, o pobre caboclo não produz pra si, o que consegue produzir tem que repassar para seu “patrão”, assim sobra a insuficiência, apenas a miséria e a fome.
Essa síntese expressa a vida de uma parte da população rural maranhense que não consegue produzir para sua própria subsistência, por uma série de fatores que tem como eixo a limitação de acesso a terra, seu principal meio de produção. E o movimento se torna o sentido de sua vida, o migrante camponês que sai do Maranhão para regiões do país que estão crescendo com a construção civil e com o agronegócio.
Mas não somente isso, a pobreza expulsa do seu modo de vida, expulsa do seu espaço, do seu lugar e precisa se achar em outros lugares. O crescimento das periferias de cidades médias e grandes é exemplo disso.
João canta assim:
Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá
Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar
A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar.
Esse é o contexto do negro e pobre, filho de camponeses que não conseguiu manter-se em Lago da Onça e agora trabalha na cidade. Não estuda, pois não pode, não tem um emprego que lhe dê dignidade, pois não pode e nem tem qualificação. João foi isso, foi esse sujeito.
João que saiu do Maranhão cantou que:
É que todo sertanejo
Sempre tem essa ilusão
Conhecer cidade grande
E põe nas costa um matulão
Deixa que cá na cidade
Não existe exploração
Mas na cidade não encontra as coisas boas que falam ter, encontra pobreza, miséria e pura exploração. Marca do território capitalista, e que João sofre como sujeito camponês que migra.
Quem era João? João era maranhense, João como o maranhense pobre e camponês, experimentou o espaço de um estado pobre. João cantou esse espaço e mostrou que não é apenas uma relação causal, e nem que não há volta, pode haver uma modificação desse contexto.
Termino esse texto com uma última:
Olha o feitor
ai vem.
Já não
somos cativos,
se ele bater na
gente,
a gente bate nele também
A resistência à exploração que ocasiona na miséria da população, à pobreza é o que João deixa por último.
Ele canta a pobreza, seu lugar de partida, expõe a exploração, e a desigualdade que deixa marcas no sertão maranhense. O poeta do povo, conta o cotidiano do pobre, de exploração e de enriquecimento do “patrão”. Nesse contexto ele bate o pé e diz que o pobre forte resiste, não é mais escravo e que não há por onde ir, é o jeito se portar contra a estrutura que empobrece, confrontar o que causa a desigualdade, “pois pra vencer a batalha é preciso ser forte, robusto e valente ou nascer no sertão”. E daí, encontrarmos em nós outro João, que supra a falta dele e não deixe essa história morrer, com poesia às formas de usurpação.
Professor de Geografia – UFMA/Campus de Pinheiro
Acabei de ler o texto mais elaborado sobre o Poeta do Povo. A análise é lúcida, cativante, demonstra parte do repertório abrangente, a crítica social profunda e os emaranhados da obra de João do Vale. Sou o filho caçula e "bastardo" do compositor.
ResponderExcluirForte abraço José Dias Rodrigues
Raoni Zambi
Valeu Raoni, obrigado.
ExcluirAbraços
Sávio José